Menu
Depositphotos_109879182_L

O sistema financeiro tem um papel estratégico na transição para uma economia de baixo carbono e tem promovido ações relevantes para o desenvolvimento sustentável, com incentivos à adoção de boas práticas agropecuárias e à preservação da vegetação nativa.

Em 2020, o Banco Central do Brasil lançou sua Agenda BC# Sustentabilidade, incluindo a incorporação de variáveis sustentáveis em seu processo de tomada de decisão, a promoção de uma gestão adequada de riscos socioambientais e climáticos no setor bancário e o fomento de finanças sustentáveis. Nessa mesma direção, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) assumiu compromisso com a economia verde e a conservação ambiental. A partir de fevereiro de 2023, estão proibidas operações de crédito rural com recursos do banco destinadas a imóveis nos quais seja identificado desmatamento ilegal.

Já a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) elaborou um roteiro para a implementação das recomendações da Task Force on Climate-Related Financial Disclosures (TCFD) no Brasil, com a publicação da Taxonomia Verde e de ferramentas para avaliação dos riscos climáticos. Além disso, diversos bancos atuantes no país vêm adotando medidas que visam alinhamento com objetivos de sustentabilidade, seguindo a tendência global de esverdeamento dos sistemas financeiros internacionais.

Todo esse movimento está ameaçado pela aprovação da nova redação da Medida Provisória (MP) nº 1150/2022 pelo Senado Federal ocorrida em 16 de maio de 2023.[1] Pesquisadores do Climate Policy Initiative/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CPI/PUC-Rio) analisaram as novas emendas incorporadas pelo Senado e identificaram que o texto ameaça o alinhamento do sistema financeiro com a sustentabilidade ao buscar restringir a capacidade de as instituições financeiras negarem empréstimos com base no descumprimento do Código Florestal e da Lei de Crimes Ambientais. Além disso, procura obrigar as instituições financeiras a basear suas decisões em informações de órgãos oficiais. Isso pode colocar em xeque o uso de ferramentas cientificamente testadas e reconhecidas por sua precisão, agilidade e qualidade, como o MapBiomas, que produz mapeamentos da cobertura e uso da terra e detecta a ocorrência de desmatamentos.

Há uma janela de oportunidade para remover essas emendas. A MP nº 1150/2022 voltou para a Câmara dos Deputados, que pode manter o texto aprovado no Senado, rejeitar as novas proposições ou, ainda, voltar com o que a própria Câmara tinha proposto anteriormente. O texto final precisa ser votado pelo plenário da Câmara até 1º de junho de 2023, caso contrário, a MP perde a validade. Por fim, o texto é levado para a sanção presidencial, momento em que o Presidente da República aprova o texto, podendo vetá-lo, no todo ou em parte.

Finanças alinhadas com critérios socioambientais: tendências nacionais e internacionais

O alinhamento do setor financeiro aos critérios de sustentabilidade ambiental é uma crescente tendência global, que vem sendo acompanhada pelo sistema financeiro brasileiro. Em 2015, a criação da TCFD pelo Financial Stability Board (FSB) teve como objetivo aprimorar a divulgação de informações sobre riscos e oportunidades financeiras relacionados às mudanças climáticas. Além disso, em 2017, foi criada a Network of Central Banks and Supervisors for Greening the Financial System (NGFS). A rede é destinada a compartilhar boas práticas e promover a gestão de riscos ambientais e climáticos no setor financeiro, além de mobilizar financiamento para apoiar a transição para uma economia sustentável.

O Banco Central do Brasil (BCB) incorporou as recomendações da TCFD a partir do lançamento da agenda BC# Sustentabilidade em 2020, integrando variáveis ambientais no processo de tomada de decisão. Em 2022, o BCB se tornou membro do comitê diretor da NGFS.

Além disso, uma série de avanços regulatórios para alinhar o financiamento para a atividade agropecuária com a proteção ambiental vêm ocorrendo. Em 2008, o Conselho Monetário Nacional (CMN) passou a exigir documentação de regularidade ambiental para fins de financiamento agropecuário no Bioma Amazônia.[2] Um destaque mais recente é a resolução do CMN em 2020 que ampliou os limites de crédito de custeio em 10% para propriedades com análise do CAR concluída em conformidade com o Código Florestal, tendo aderido ao PRA quando existem passivos ambientais,[3] um incentivo para produtores que respeitam a legislação ambiental. Em 2021, o BCB passou a restringir o acesso ao crédito rural em propriedades com impedimentos sociais, ambientais e climáticos, tais como sobreposição com terras indígenas, quilombolas e unidades de conservação, áreas embargadas pelo Ibama no Bioma Amazônia, entre outros.[4]

Mais recentemente, o BNDES, que respondeu por um terço do volume total de crédito rural destinado a investimentos nos últimos anos, publicou uma normativa informando as instituições financeiras repassadoras de crédito que o banco passaria a utilizar ferramentas para monitorar o desmatamento em operações de crédito rural.[5] A partir de fevereiro de 2023, a contratação de operações de crédito rural destinadas a imóveis nos quais fosse identificado o desmatamento ilegal passou a ser bloqueada. Além disso, no caso de desmatamento após a contratação da operação, a liberação de recursos poderá ser suspensa ou até mesmo liquidada, a menos que seja comprovada a regularidade da situação do imóvel.

Além dos avanços regulatórios, a Febraban elaborou um roteiro para a implementação da TCFD no Brasil em 2017, avançando na criação de uma taxonomia verde aplicável ao sistema financeiro nacional. Várias instituições financeiras que atuam no país também têm se preocupado cada vez mais em alinhar sua atuação com a proteção ambiental. Um exemplo é o Rabobank, banco holandês cujas operações no Brasil são concentradas no agronegócio. Sua Política de Responsabilidade Social, Ambiental e Climática é explícita em afirmar que o banco não financia produtores que desmatam no Brasil, seja legal ou ilegalmente.[6]

Ainda existe amplo espaço para avanços nessa agenda, mas é inegável que muitas ações já foram consolidadas nessa direção. O texto aprovado pelo Senado vai na direção contrária desses esforços, como será detalhado na próxima seção.

IMPACTO da MP Nº 1150 na capacidade das instituições financeiras de combater o desmatamento

O texto da MP nº 1150/2022,[7] aprovado pelo Senado, acrescenta os parágrafos 8º, 9º e 10º ao Código Florestal, que dispõe sobre o Programa de Regularização Ambiental (PRA). O parágrafo oitavo estabelece que “a partir da assinatura do termo de compromisso e durante a vigência do PRA, o proprietário ou possuidor de imóvel rural estará em processo de regularização ambiental e não poderá ter financiamento da sua atividade negado em face do descumprimento desta Lei ou dos arts. 38, 39 e 48 da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, devendo as instituições financeiras embasarem suas decisões em informações de órgãos oficiais.”

A redação deste artigo é bastante obscura e dá margem para diferentes interpretações. É razoável pensar que a proposta visa garantir que produtores que estejam regularizando suas propriedades não sejam impedidos de obter crédito por conta de desmatamento que seja alvo de regularização por meio de um termo de compromisso no âmbito do PRA. No entanto, a redação proposta é bem mais abrangente do que o necessário para esse objetivo. Ela estabelece que o produtor, ao assinar um termo de compromisso, teria o financiamento de suas atividades garantido, mesmo em casos de descumprimento da lei em questão (Código Florestal) ou dos artigos 38, 39 e 48 da Lei 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais). Em outras palavras, bastaria que o produtor assinasse um termo de compromisso para garantir financiamento, independentemente de descumprir, a qualquer momento, as regras do Código Florestal ou da Lei de Crimes Ambientais.[8]

Isso implica que o crédito para proprietários rurais envolvidos em desmatamento ilegal não poderia ser bloqueado, mesmo que sejam identificados novos desmatamentos que não sejam objeto de regularização. É importante ressaltar que produtores em processo de regularização ambiental que estejam agindo dentro da legalidade, isto é, sem cometer novos desmatamentos ilegais, não são alvo de bloqueios no acesso ao crédito. Logo, essa medida beneficia aqueles produtores que estão agindo à margem da lei.

A medida vai na contramão do alinhamento de instrumentos financeiros com o combate ao desmatamento. Um exemplo disso é a já mencionada circular, emitida recentemente pelo BNDES, que bloqueia empréstimos a propriedades rurais desmatadas ilegalmente. No período compreendido entre 09/02/2023 (início da verificação das bases do MapBiomas) até 10/05/2023, foram realizadas 9.316 solicitações de contratações de crédito rural ao BNDES, no valor de R$ 3,7 bilhões. Neste mesmo período, encontram-se bloqueadas 67 operações de crédito rural no valor de R$ 29 milhões (0,78% do total de solicitações de contratações do período), em decorrência da identificação de indício de desmatamento ilegal na solicitação de financiamento. Portanto, a esmagadora maioria dos produtores agropecuários não estão tendo pedidos de empréstimo negados e é de interesse do setor que o crédito e a política pública não estejam associados a desmatamento ilegal.

A redação atual da MP nº 1150/2022 pode afetar a autonomia das instituições financeiras em definir critérios para concessão de crédito. A regulação detalhada do funcionamento das instituições financeiras é responsabilidade do Conselho Monetário Nacional (CMN) e do Banco Central do Brasil (BCB). Essas entidades têm a atribuição de definir as regras e procedimentos para o funcionamento do sistema financeiro no Brasil.

Além disso, a proposta determina que as instituições financeiras devem basear suas decisões em informações provenientes de órgãos oficiais, os quais devem garantir o acesso e a disponibilidade atualizada dos dados do CAR e do PRA. Essa medida transfere a responsabilidade de verificação dos dados do CAR e do PRA para as instituições financeiras, condicionando essa verificação às informações sobre desmatamento fornecidas pelos órgãos oficiais. No entanto, conforme destacado em estudo do CPI/PUC-Rio,[9] há uma série de dificuldades associadas aos dados do Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (SICAR), sistema que reúne e integra as bases de CAR de todos os estados. Essas dificuldades incluem a instabilidade do sistema, problemas de sincronização entre bases estaduais, a demora na atualização e correção das falhas técnicas, bem como lentidão no atendimento às demandas estaduais. Se o governo não possui capacidade operacional para integrar as bases estaduais do CAR e fornecer informações precisas e atualizadas, é inviável exigir essa responsabilidade das instituições financeiras. Essa medida também aumentaria o custo operacional das instituições e demandaria capacidade técnica adicional de processamento.

Vale destacar que, novamente, a medida pode entrar em conflito com os bloqueios realizados pelo BNDES, nos quais os desmatamentos foram identificados por meio de uma parceria com o MapBiomas. Nessa parceria, os dados do CAR são cruzados com informações oficiais de desmatamento produzidas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), como o sistema DETER e o PRODES, utilizadas pela plataforma em seus alertas de desmatamento. Vale destacar que o MapBiomas é uma ferramenta amplamente testada por cientistas e de reconhecida precisão, agilidade e qualidade. Dessa forma, as emendas à MP visam dificultar não apenas que as instituições financeiras bloqueiem o crédito ao identificar desmatamento ilegal, mas também obriga essas instituições a utilizar dados que o próprio Estado não consegue prover.

Instrumentos financeiros, como o crédito rural e o seguro rural, têm o potencial de criar incentivos adequados para equilibrar a produção agropecuária e a preservação ambiental, impulsionando ganhos de produtividade sem desmatamento. O sucesso econômico do Brasil depende cada vez mais da promoção da sustentabilidade, da modernização produtiva e da preservação dos nossos biomas. A legislação ambiental e a regulamentação do sistema financeiro devem pavimentar o caminho para avanços nessa frente tão fundamental para o futuro da agropecuária e da economia brasileira.


[1] Ressalta-se que o Senado rejeitou as alterações à Lei da Mata Atlântica que tinham sido incorporadas anteriormente pela Câmara dos Deputados.

[2] Banco Central do Brasil (BCB). Resolução CMN nº 3.545 de 29/02/2008. bit.ly/3MT93BI. Data de acesso: 23 de maio de 2023.

[3]  Banco Central do Brasil (BCB). Resolução CMN nº 4.883 de 23/12/2020. bit.ly/3q9Kvvm. Data de acesso: 23 de maio de 2023. Essa resolução foi posteriormente alterada pela Resolução CMN nº 5.021 de 29/06/2022.

[4] Banco Central do Brasil (BCB). Resolução BCB nº 140 de 15/09/2021. bit.ly/3ojfvbL. Data de acesso: 23 de maio de 2023.

[5] Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Circular SUP/ADIG nº 57/2022-BNDES de 11/11/2022. bit.ly/41XjjwN. Data de acesso: 23 de maio de 2023.

[6] Banco Rabobank International Brasil S.A. Política de Responsabilidade Social, Ambiental e Climática Rabobank Brasil (PRSAC), agosto de 2022. bit.ly/3MOL2vt. Data de acesso: 23 de maio de 2023.

[7] Quando há alteração ou emendas na redação do texto original da Medida Provisória (MP) durante sua tramitação no Congresso Nacional, uma MP passa a ser chamada de Projeto de Lei de Conversão (PLV). Após as novas emendas aprovadas no Senado, a MP nº 1150/2022 foi convertida no PLV nº 6/2023. Por simplicidade, este documento se referirá ao PLV nº 6/2023 como MP nº 1150/2022.

[8] Os parágrafos quarto e quinto do artigo 59 do Código Florestal são bem específicos ao tratar de infrações cometidas antes de 22 de julho de 2008, relativas à supressão irregular de vegetação em Áreas de Preservação Permanente, de Reserva Legal e de uso restrito. A redação proposta para o artigo oitavo não faz essa restrição, simplesmente diz “descumprimento desta Lei”.

[9] Chiavari, Joana e Cristina Leme Lopes. Onde Estamos e Para Onde Vamos na Implementação do Código Florestal: Oportunidades Para o Novo Governo Lula. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2022. bit.ly/OndeEstamoseParaOndeVamos

up

Usamos cookies para personalizar o conteúdo por idioma preferido e para analisar o tráfego do site. Consulte nossa política de privacidade para obter mais informações.