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Em 10 de abril de 2023, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) apresentou uma ação judicial (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 1056) perante o Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a constitucionalidade da Lei nº 6.739/1979. Essa lei regulamenta o cancelamento administrativo de matrículas e registros de imóveis rurais, em casos de flagrante ilegalidade, incluindo a apropriação indevida de terras públicas. Trata-se de um procedimento bem mais célere e que pode ser feito em escala, ao contrário do processo judicial, que pode demorar muitos anos para cancelar apenas um registro.

Ou seja, a Lei nº 6.739/1979 é um importante instrumento de combate à grilagem no país e já permitiu, por exemplo, o cancelamento de mais de 10 mil registros ilegais, abrangendo uma área de aproximadamente 91 milhões de hectares, somente no estado do Pará.[1],[2] O Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA) vem inclusive validando decisões que bloqueiam e/ou cancelam registros imobiliários com base nessa lei.[3]

Pesquisadores do Climate Policy Initiative/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CPI/PUC-Rio) analisaram a ADPF nº 1056 e concluíram que:

i. caso a ação seja julgada procedente pelo STF, com a declaração de inconstitucionalidade de vários artigos da Lei nº 6.739/1979, haverá um significativo retrocesso na política de combate à grilagem de terras no país, em especial na Amazônia;

ii. a ação proposta pela CNA só beneficia criminosos, já que a própria lei que está sendo questionada estabelece procedimentos que asseguram os direitos de proprietários legítimos;

iii. a simples proposição da ADPF pode ter um efeito paralisante não só nas ações judiciais em curso sobre cancelamento de registros, como também nas iniciativas de combate à grilagem promovidas por órgãos estaduais (por exemplo, corregedorias de justiça) e federais (por exemplo, Conselho Nacional de Justiça);

iv. por fim, a perda de um mecanismo eficaz de cancelamento de matrículas e registros ilegais traz sérios riscos para o futuro, pois poderá incentivar novas ocupações ilegais e fraudes registrais, promovendo desmatamento e conflitos fundiários na Amazônia.

A importância da Lei nº 6.739/1979 no combate à grilagem de terras públicas

A ocupação ilegal de terras públicas, fenômeno conhecido por grilagem,[4] é um dos maiores problemas fundiários no Brasil. Trata-se de característica do processo de ocupação territorial do país, especialmente da Amazônia, e vai além do âmbito jurídico, gerando custos sociais, econômicos e ambientais.[5] Estima-se que a área total grilada no país pode chegar a 100 milhões de hectares.[6]

De um lado, há a dimensão física-econômica da grilagem, quando há, de fato, uma invasão, desmatamento e a prática de atividades ilícitas em áreas públicas. De outro lado, há a dimensão jurídica-administrativa desse fenômeno, quando o roubo de terras públicas se dá por meio de fraudes nos registros de imóveis e cadastros de terras.[7] De acordo com os dados levantados pelo Sistema Geográfico de Informação Fundiário (SIG Fundiário),[8] há 22,7 milhões de hectares de terras privadas e 18,5 milhões de hectares de terras públicas no Pará que só existem no papel. O sistema identificou que há até 10 registros simultâneos sobre uma mesma área.[9]

A Lei nº 6.739/1979 regulamenta o procedimento administrativo de retificação e cancelamento de matrículas e registros de imóveis rurais. De acordo com a lei, o cancelamento pode ser requerido pelas Corregedorias de Justiça, pela União, pelos estados, pelos municípios e por órgãos ou entidades públicas interessadas, inclusive pelo Ministério Público, quando se verificar a existência de registros nulos ou irregulares ou de apropriação indevida de terras públicas.

O pedido de cancelamento é encaminhado ao Corregedor-Geral de Justiça, quando se tratar de apropriação ilegal de terra pública estadual,[10] ou ao Juiz Federal, no caso de terra pública federal. A lei prevê a possibilidade de o interessado recorrer da decisão proferida pelo Corregedor-Geral ou pelo Juiz Federal, garantindo a ampla defesa de quem se sentir prejudicado.

O cancelamento administrativo de matrículas e registros ilegais traz celeridade à atividade de fiscalização do Poder Judiciário sobre os atos registrais e garante ao poder público um mecanismo eficaz de controle sobre a apropriação e registro fraudulentos de terras públicas. A Figura 1, a seguir, explica a importância da Lei nº 6.739/1979 no combate à grilagem.

Figura 1. A Importância da Lei nº 6.739/1979 no Combate à Grilagem de Terras Públicas

Fonte: CPI/PUC-Rio com base nas informações da Transparência Internacional (2021) e SIG Fundiário, 2023

Foi com fundamento na Lei nº 6.739/1979 que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou, em 2010, que a Corregedoria do TJPA promovesse o cancelamento de mais de 10 mil registros ilegais, abrangendo uma área de aproximadamente 91 milhões de hectares, equivalente a 73% do estado do Pará.[12] Antes dessa decisão, o próprio CNJ já havia cancelado a matrícula de um único imóvel rural de mais de 410 milhões de hectares, registrada no cartório de Vitória do Xingu, área equivalente a quase quatro vezes o território do próprio estado.[13]

Essa decisão do CNJ, em 2010, foi tão importante que até hoje serve de fundamento para as iniciativas do conselho referentes a questões fundiárias, como a recente criação de seu Programa Permanente de Regularização Fundiária na Amazônia Legal.[14]

As ações de cancelamento de matrículas e registros imobiliários fraudulentos, promovidas pelo CNJ e Corregedoria do TJPA, nos últimos 15 anos, foram essenciais para o combate à grilagem de terras no Pará. São registros de imóveis que não seguiram os trâmites legais ou que foram obtidos por meio de fraudes e corrupção.[15] Insegurança jurídica e conflitos fundiários ainda existem no estado, entretanto, o cancelamento administrativo de registros é um passo na direção certa e deveria ser intensificado e expandido para outros estados da Amazônia.

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 1056

Tramitação da ADPF nº 1056

A ADPF nº 1056 foi ajuizada pela CNA, no STF, e distribuída ao relator Ministro Alexandre de Moraes, em 10 de abril de 2023. O Supremo já recebeu as manifestações da Presidência da República, da Câmara dos Deputados e da Advocacia-Geral da União (AGU). As três instituições foram unânimes em afirmar que a Lei nº 6.739/1979 não é inconstitucional em nenhum aspecto. Até 11 de maio de 2023, o Senado Federal ainda não havia se manifestado. O relator irá decidir sobre o pedido de liminar da CNA quando o tribunal receber todas as informações solicitadas.

Ao longo de todo o processo, terceiros interessados — como organizações da sociedade civil — podem ingressar na ação como “amigos da corte” (amicus curiae), a fim de auxiliarem o tribunal com o fornecimento de informações relevantes para a compreensão do caso e de seus possíveis impactos na sociedade.

Argumentos jurídicos da ADPF nº 1056

A CNA alega que a Lei nº 6.739/1979 violaria os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da segurança jurídica, do direito à propriedade, da proporcionalidade e da razoabilidade, dentre outros.

Entretanto, esses argumentos não se sustentam, pois a corte suprema do país já teve a oportunidade de se debruçar, em inúmeras ocasiões, sobre a constitucionalidade da Lei nº 6.739/1979. Todos os fundamentos levantados pela CNA na ADPF nº 1056 já foram exaustivamente discutidos e refutados nessas ações e mencionados nas referidas manifestações da Presidência da República, da Advocacia-Geral da União e da Câmara dos Deputados nos autos do processo.

Em 1983, o STF julgou constitucional a Lei nº 6.739/1979 e reforçou que ela garante o direito ao contraditório e à ampla defesa, uma vez que há possibilidade de o interessado recorrer das decisões de cancelamento. [16]

Em 2016, o STF também considerou constitucional o provimento do Tribunal de Justiça do Estado do Pará,[17] tendo por fundamento a Lei nº 6.739/1979, em discussão na ADPF. Segundo o Ministro Luiz Fux, relator dessa decisão, o provimento colocou “à disposição do interessado instrumento destinado à requalificação da matrícula eventualmente cancelada, conferindo-lhe a oportunidade de apresentar as provas de regularidade de seu título, e, consectariamente, de exercer o contraditório da maneira adequada, de modo que não há falar em violação ao direito à ampla defesa e ao contraditório”.[18]

Em uma série de decisões, a Ministra Rosa Weber e o Ministro Roberto Barroso reforçam a constitucionalidade da lei, se valendo dos precedentes da própria corte acima mencionados.[19],[20]

Efeitos da ADPF nº 1056

Caso a ação seja julgada procedente pelo STF, haverá um significativo retrocesso na política de combate à grilagem de terras no país, em especial na Amazônia. Além disso, seria, de certa forma, um prêmio àqueles que cometem o crime de grilagem, já que uma eventual declaração de inconstitucionalidade da lei dificultaria o controle e o cancelamento dos títulos fraudulentos. Esse cenário reforçaria o ciclo vicioso de invasão-desmatamento-impunidade, comprometendo a conservação da floresta e promovendo conflitos fundiários.

Os efeitos nefastos da ADPF nº 1056 poderão ser sentidos desde já, caso o Supremo acolha pedido de liminar[21] para (i) suspender todos os processos de cancelamento administrativo de registros de imóveis em andamento nas Corregedorias Estaduais de Justiça e (ii) suspender a aplicação dos artigos da lei que estão sendo questionados.

Ainda que o STF negue o pedido de liminar, a ação, por si só, gera insegurança jurídica e poderá ter um efeito paralisante nos processos em andamento, já que juízes de primeira e segunda instâncias podem preferir aguardar a decisão final da corte. Além disso, essa ação também pode inibir ou mesmo paralisar iniciativas de cancelamento de matrículas e registros irregulares, empreendidas por órgãos do poder judiciário, como as corregedorias estaduais e o CNJ, impactando toda a política de combate à grilagem de terras no país.

Sendo assim, espera-se que o STF não aceite o pedido de liminar e julgue improcedente a ação, declarando a constitucionalidade dos artigos impugnados, para garantir que o poder público continue a contar com um importante mecanismo de combate à grilagem de terras no Brasil, cuja aplicação merece ganhar escala e ser expandida.


[1] Rocha, Ibraim. “A batalha do latifúndio em defesa da grilagem alça ao STF”. Revista Pub – diálogos interdisciplinares, 2023. bit.ly/3pPliWM.

[2] Treccani, Girolomo et al. Combate a Grilagem de Terras em Cartórios no Pará; Uma Década de Avanços e Desafios. Amazônia 2030, 2023. bit.ly/42MwtxP.

[3] Silva, Gabriel C. P. “Combate à grilagem na jurisprudência paraense: bloqueios e cancelamentos de registros”. FDUA – Fórum de Direito Urbano e Ambiental, nº 128 (2023): 35-47.

[4] O termo “grilagem” vem de uma prática antiga de se colocar grilos (insetos) em uma caixa fechada com falsos documentos de registros de terras. Após algumas semanas, os grilos conferiam um aspecto amarelado ao documento, dando-lhe a falsa impressão de serem mais antigos do que eram.

[5] Chiavari, Joana, Cristina L. Lopes e Julia N. de Araujo. Panorama dos Direitos de Propriedade no Brasil Rural. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2021. bit.ly/3LhEKlM.

[6] Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. O Livro Branco da Grilagem de Terra no Brasil. Brasília: Ministério da Política Fundiária e do Desenvolvimento Agrário, 1999.

[7] Stassart, Joachim et al. Governança Fundiária Frágil, Fraude e Corrupção: um Terreno Fértil para a Grilagem de Terras. Transparência Internacional, 2021. bit.ly/3O2t89v.

[8] SIG Fundiário é uma plataforma elaborada pela Universidade Federal do Pará, em colaboração com o Ministério Público e o Tribunal de Justiça do Estado do Pará, que integrou bases de dados de órgãos públicos e cartórios do estado do Pará.

[9] Fioravanti, Carlos. “As terras imaginárias do Pará”. Revista Pesquisa Fapesp, 29 de novembro de 2022. bit.ly/3LSKbZ3.

[10] Os estados podem ter legislação própria sobre o assunto. No Pará, por exemplo, o pedido de cancelamento é encaminhado ao juiz da Vara Agrária competente.

[11] Os estados podem ter legislação própria sobre o assunto. No Pará, por exemplo, o pedido de cancelamento é encaminhado ao juiz da Vara Agrária competente.

[12] Treccani, Girolomo et al. Combate a Grilagem de Terras em Cartórios no Pará; Uma Década de Avanços e Desafios. Amazônia 2030, 2023. bit.ly/42MwtxP.

[13] Conselho Nacional de Justiça. Processo nº 0005322-16.2009.2.00.0000. 2009.

[14] Conselho Nacional de Justiça. Provimento nº 144 de 25 de abril de 2023. 2023. bit.ly/43aYI9x. Data de acesso: 2 de maio de 2023.

[15] Stassart, Joachim et al. Governança Fundiária Frágil, Fraude e Corrupção: um Terreno Fértil para a Grilagem de Terras. Transparência Internacional, 2021. bit.ly/3O2t89v.

[16] Rocha, Ibraim. “A batalha do latifúndio em defesa da grilagem alça ao STF”. Revista Pub – diálogos interdisciplinares, 2023. bit.ly/3pPliWM.

[17] Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Provimento Conjunto nº CJCI-CJRMB nº 10. 2012.

[18] STF. MS nº 31.681/DF. Relator Ministro Luiz Fux. 2016. bit.ly/4581wWN. Data de acesso: 3 de maio de 2023.

[19] Decisões no Supremo Tribunal Federal da Relatora Ministra Rosa Weber (data de acesso: 3 de maio de 2023):
STF. MS nº 29.312/DF. Relatora Ministra Rosa Weber. 2016. bit.ly/3Mfmbzj; STF. MS nº 30.040/DF. 2016. bit.ly/3qbp4ty; STF. MS nº 31.156/DF. 2016. bit.ly/3WflgDw; STF. MS nº 30.215/DF. 2016. bit.ly/43nHl5f; STF. MS nº 30.220/DF. 2016. bit.ly/3WvxyI8; STF. MS nº 30.222/PA. 2016. bit.ly/3MR8doO; STF. MS nº 30.231/DF. 2016. bit.ly/436Fja0; STF. MS nº 29.375/PA. 2018. bit.ly/3qbPAmx; STF. MS nº 31.365/DF. 2018. bit.ly/3odU2kk.

[20] STF. MS nº 31.352/DF. Relator Ministro Roberto Barroso. 2017. bit.ly/45vMWsj. Data de acesso: 3 de maio de 2023.

[21] Pedido de liminar possui a finalidade de antecipar, para o início do processo, o resultado pretendido pelo autor. O juiz pode acatar esse pedido, por meio de decisão liminar, observados determinados requisitos legais.

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