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Introdução

O crédito rural é a principal política pública voltada ao setor agropecuário no Brasil. Sua relevância vai além da economia: ele pode ser um poderoso aliado na conciliação entre produção e conservação ambiental. Ao promover ganhos de produtividade e, ao mesmo tempo, reduzir a pressão por desmatamento, o crédito rural tem potencial para impulsionar uma transição efetiva rumo a uma agropecuária mais sustentável.

Para que isso aconteça, no entanto, é essencial que os recursos públicos destinados ao setor estejam alinhados com objetivos sociais, ambientais e climáticos. O crédito rural deve servir como instrumento para modernizar a produção, estimular boas práticas e proteger nossos biomas.

Nos últimos anos, o Brasil deu passos importantes nessa direção. Critérios socioambientais vêm sendo atrelados ao acesso ao crédito rural. Desde 2008, o crédito no bioma Amazônia não pode ser concedido a propriedades com embargos. E, a partir de 2020, produtores com o Cadastro Ambiental Rural (CAR) em conformidade ou em processo de regularização via Programa de Regularização Ambiental (PRA) passaram a ter acesso a limites de crédito maiores. Ainda assim, o caminho para um crédito sustentável e coerente com os desafios ambientais do país continua em construção — e o Plano Safra pode e deve ter um papel mais estratégico nesse processo.

Foi nesse cenário que o Conselho Monetário Nacional (CMN) publicou, no final de 2024, a Resolução nº 5.193.[1]A nova norma trouxe alterações relevantes nos impedimentos socioambientais para o acesso ao crédito rural, incluindo, pelo menos, quatro mudanças significativas em temas como desmatamento, embargos ambientais e sobreposição de imóveis com terras públicas, como florestas públicas não destinadas.

Pesquisadores do Climate Policy Initiative/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CPI/PUC-Rio) analisaram as mudanças trazidas pela Resolução nº 5.193 e identificaram avanços importantes — como o impedimento do crédito para projetos com supressão de vegetação nativa e para imóveis com desmatamento ilegal. Mas também observaram retrocessos e lacunas que precisam ser enfrentados. A norma, por exemplo, carece de mecanismos de monitoramento que assegurem o uso adequado dos recursos e não define sanções claras em caso de descumprimento dos impedimentos socioambientais, o que compromete sua efetividade. Esta nota técnica apresenta uma análise detalhada dessas mudanças, destaca seus potenciais impactos e propõe caminhos para o aperfeiçoamento do marco regulatório do crédito rural no Brasil — rumo a uma política pública que promova, de fato, uma agropecuária sustentável e com responsabilidade ambiental.

Principais Mensagens

  • Impedimento da concessão de crédito rural para projetos com supressão de vegetação nativa

A resolução veda, pela primeira vez, a concessão de crédito rural a projetos que envolvam a supressão de vegetação nativa, independentemente de ser legal ou ilegal. Trata-se de um avanço relevante, ao desvincular a concessão de recursos públicos da prática do desmatamento. No entanto, como o dinheiro é um bem fungível — ou seja, ele se mistura com os demais recursos financeiros do produtor, sem que seja possível rastrear exatamente como cada real foi gasto —, permanece o desafio de assegurar que os recursos públicos sejam efetivamente aplicados em consonância com as normas e não acabem, na prática, viabilizando o desmatamento.

  • Impedimento da concessão de crédito para imóveis com desmatamento ilegal

A resolução traz um avanço ao impedir a concessão de crédito rural para imóveis com desmatamento ilegal ocorrido a partir de julho de 2019, com base no cruzamento de dados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes) e do Cadastro Ambiental Rural (CAR). O produtor deve comprovar a legalidade da supressão ou demonstrar que a área desmatada está em processo de regularização. A norma também permite que o mutuário apresente um laudo técnico baseado em sensoriamento remoto para comprovar a ausência de desmatamento. Embora essa medida possa corrigir eventuais falhas dos sistemas públicos de sensoriamento, ela também pode abrir brechas para a concessão de crédito a imóveis com desmatamento irregular, sem comprovação efetiva da legalidade.

  • Limitação da norma: apenas o crédito rural com recursos controlados ou direcionados não pode ser concedido a projetos que incluem supressão de vegetação nativa ou a imóveis com desmatamento ilegal

A restrição de acesso ao crédito rural para projetos que incluem a supressão de vegetação nativa e a imóveis com desmatamento ilegal aplica-se apenas às operações com recursos controlados ou direcionados. Isso limita a efetividade da medida, pois exclui o crédito com recursos livres, que também conta com benefícios fiscais, como a alíquota zero de Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Como todo o crédito rural se beneficia de recursos públicos, o impedimento ao financiamento nesses casos deveria valer para operações com todas as fontes dos recursos.

  • Flexibilização do impedimento ao crédito para imóveis com áreas embargadas

A resolução ajusta a regra de impedimento à concessão de crédito para imóveis com áreas embargadas, permitindo o financiamento nos casos em que os recursos são destinados à recuperação da vegetação nativa ou em áreas em processo de regularização. A medida busca diferenciar os produtores que permanecem em situação irregular daqueles que estão se esforçando para cumprir a legislação. Contudo, sua efetividade depende da vinculação a mecanismos de monitoramento que garantam a recuperação das áreas embargadas.

  • Risco de estímulo ao desmatamento e à grilagem em florestas públicas não destinadas

A resolução autoriza a concessão de crédito para ocupações de até 15 módulos fiscais em florestas públicas não destinadas, mesmo sem comprovação de regularização fundiária. Vale notar que há regiões onde o módulo fiscal pode chegar a até 110 ha, ou seja, a resolução possibilitaria ocupações de até 1.500 ha. Antes, essa exceção era restrita a imóveis de até quatro módulos fiscais com pedido de regularização já deferido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A mudança pode incentivar o desmatamento e a grilagem nas áreas de florestas públicas não destinadas, especialmente na ausência de controles sobre o uso do crédito.

  • Falta de mecanismos de monitoramento e sanções efetivas em caso de descumprimento das normas socioambientais

A resolução não prevê instrumentos para monitorar a aplicação dos recursos conforme os impedimentos socioambientais, nem define sanções efetivas em caso de descumprimento. A desclassificação da operação, prevista como consequência, é limitada: não assegura a devolução dos recursos nem a reparação ambiental. Seria necessário prever penalidades mais robustas. Além disso, não estão previstas sanções para instituições financeiras que deixem de aplicar ou fiscalizar os impedimentos, o que enfraquece a implementação da norma e reduz seu poder dissuasório.

O CMN e os Impedimentos Socioambientais ao Crédito Rural

O Conselho Monetário Nacional (CMN) é uma entidade do Sistema Financeiro Nacional, responsável por formular políticas e regulamentações para as operações de crédito no Brasil.[2] No exercício dessa atribuição, o CMN tem competência legal para estabelecer, por ato administrativo — como a Resolução CMN nº 5.193/2024 —, impedimentos socioambientais para a aplicação do crédito rural.[3],[4]

Como órgão do Poder Executivo, o CMN pode regulamentar de forma ágil, respondendo rapidamente a mudanças nas demandas sociais, ambientais e econômicas. No entanto, o estabelecimento de condicionantes socioambientais ao crédito rural tem gerado resistência de parte do setor agropecuário, que questiona, inclusive, a competência do CMN para criar tais regras.

Com o objetivo de limitar essas iniciativas, foi proposto o Projeto de Lei (PL) nº 205/2025, que busca transferir para a lei a definição dos impedimentos socioambientais ao crédito rural.[5] Embora o PL preveja regras semelhantes às da Resolução, sua aprovação pode restringir significativamente a autonomia do CMN. Ao subordinar os atos normativos do Conselho à legislação, o PL enfraquece a capacidade de o Executivo responder a mudanças nas dinâmicas socioambientais. Isso representaria um retrocesso na governança da política de crédito e pode comprometer os avanços já alcançados no financiamento agropecuário.

Impedimento do Crédito Rural para Projetos com Supressão de Vegetação Nativa

A Resolução CMN nº 5.193/2024 trouxe, pela primeira vez, o impedimento da concessão de crédito rural, com recursos controlados[6] ou direcionados, para projetos que prevejam a supressão de vegetação nativa. A medida representa um avanço importante, ao estabelecer que esses recursos não sejam utilizados para financiar o desmatamento — independentemente de sua legalidade.

Essa mudança sinaliza uma ruptura com o financiamento para atividades que pressionam a vegetação nativa, mesmo quando amparadas por autorizações legais. Trata-se de uma orientação clara para alinhar a política de crédito rural aos compromissos de sustentabilidade e à transição para uma agropecuária de baixo carbono.

No entanto, a efetividade dessa medida dependerá da forma como será implementada e monitorada. Como os recursos financeiros são fungíveis — ou seja, uma vez recebidos, se misturam aos demais recursos do produtor —, é difícil garantir que o financiamento não seja, na prática, direcionado a atividades que envolvam supressão de vegetação nativa, mesmo que isso não esteja explicitado no projeto formal.

Além disso, a restrição se aplica apenas ao projeto financiado, e não ao imóvel como um todo. Isso levanta dúvidas a respeito de mecanismos de controle sobre a área efetivamente financiada, independentemente da menção à supressão no projeto. Ademais, a resolução não esclarece se haverá monitoramento da gleba, objeto do crédito — ponto que precisa ser detalhado em normativos complementares.

Vale destacar ainda que a regra se aplica apenas às operações com recursos controlados ou direcionados. No entanto, a vedação a projetos com supressão de vegetação nativa deveria abranger todas as linhas de crédito rural — inclusive aquelas com recursos livres —, já que essas também contam com isenções fiscais, como a alíquota zero de IOF.

Impedimento ao Crédito para Imóveis com Desmatamento Ilegal

A Resolução CMN nº 5.193/2024 determina que, a partir de 2 de janeiro de 2026, as instituições financeiras devem consultar se houve supressão de vegetação nativa no imóvel rural após 31 de julho de 2019 com base em informações disponibilizadas pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), provenientes do Prodes do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Essa regra representa um avanço importante e segue o mesmo caminho adotado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que desde fevereiro de 2023 exige o bloqueio de operações de crédito rural associadas a desmatamento ilegal. A experiência positiva do banco demonstra que é possível implementar esse tipo de controle de forma eficaz.

A mudança também endereça o problema do financiamento subsidiado a propriedades com desmatamento, evidenciado em pesquisas do CPI/PUC-Rio, que recomendam a verificação do uso do solo como condição para a concessão do crédito rural.[7],[8]

Nos casos em que o Prodes identificar desmatamento após a data de corte, a concessão de crédito com recursos controlados ou direcionados fica condicionada à apresentação, por parte do mutuário, de documentação que comprove a legalidade da supressão — como a Autorização de Supressão de Vegetação (ASV) ou documento equivalente, a depender da nomenclatura usada por cada estado.

Outra possibilidade para obter crédito é comprovar que a área desmatada ilegalmente está em processo de regularização, por meio da adesão ao Programa de Regularização Ambiental (PRA), apresentação de Plano de Recuperação de Área Degradada (PRAD) ou de Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). No entanto, a resolução trata essas situações de forma genérica, sem exigir comprovação de que a área esteja efetivamente em recuperação. Considerando que os processos de regularização ambiental podem se estender por anos, seria necessário prever mecanismos de controle contínuo para garantir a restauração da vegetação. Além disso, a resolução autoriza os produtores a contestarem os dados oficiais do Prodes por meio de laudo técnico baseado em sensoriamento remoto. Essa alternativa pode ser útil para corrigir eventuais inconsistências, mas levanta preocupações quanto à possibilidade de fragilizar o sistema, ao permitir a concessão de crédito com base em informações que contradizem dados oficiais amplamente reconhecidos.

Por fim, a abrangência da regra ainda é limitada: a restrição vale apenas para operações com recursos controlados ou direcionados. Como se trata de desmatamento ilegal, a vedação deveria valer para todas as linhas de financiamento rural, inclusive aquelas com recursos livres, que também contam com benefícios fiscais, como a alíquota zero de IOF.

Flexibilização do Impedimento ao Crédito para Imóveis com Áreas Embargadas

O impedimento à concessão de crédito rural para imóveis com embargos ambientais por desmatamento ilegal tem sido regulamentado pelos órgãos responsáveis pela política de crédito rural. A Resolução BCB nº 140/2021[9] deu os primeiros passos ao estabelecer uma restrição parcial, e a Resolução CMN nº 5.081/2023[10] consolidou avanços importantes ao ampliar essa vedação para todos os biomas e para autuações em qualquer esfera (federal ou estadual), desde que o embargo esteja registrado no Cadastro de Autuações Ambientais e Embargos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Desde a ampliação das restrições ao crédito para imóveis com embargos ambientais por desmatamento ilegal, especialmente com a Resolução CMN nº 5.081/2023, representantes do setor rural passaram a manifestar forte insatisfação com as regras, alegando impactos negativos sobre os produtores e pressionando por maior flexibilização das exigências.[11],[12] As vedações passaram a atingir todos os biomas, autuações em qualquer esfera (federal e estadual) e, sobretudo, o imóvel como um todo — o que gerou pressões significativas por maior flexibilização.

Em resposta a essas pressões, o CMN passou a revisar as regras, buscando atender a demandas do setor agropecuário sem, contudo, abandonar os critérios socioambientais. Foi nesse contexto que, em 2024, a Resolução CMN nº 5.193 trouxe novas exceções à vedação de crédito para imóveis com embargo por desmatamento ilegal. Essas mudanças refletem um esforço de ajuste da norma, mas buscam gerar incentivos à regularização ambiental.

A Resolução 5.193/2024 procura realizar distinção entre produtores que seguem em situação irregular e aqueles que estão adotando medidas para a regularização. No entanto, sua efetividade depende da existência de mecanismos de monitoramento que assegurem, na prática, a recuperação das áreas embargadas.

Antes mesmo da Resolução nº 5.193/2024, o CMN já havia iniciado ajustes nas regras em resposta às pressões do setor. Em julho de 2024, reconhecendo a especificidade de imóveis coletivos, como assentamentos da reforma agrária e territórios de povos e comunidades tradicionais, o Conselho publicou a Resolução CMN nº 5.158/2024.[13] Nesse caso, o impedimento à concessão de crédito passou a incidir apenas sobre a área embargada e quando o tomador de crédito for diretamente responsável pela infração. O objetivo foi evitar que pessoas com direito de ocupação em partes não embargadas do imóvel coletivo fossem penalizadas.

Novas Exceções à Regra de Crédito para Áreas Embargadas

A Resolução CMN nº 5.193/2024 trouxe três novas exceções à regra geral de vedação, válidas a partir de 2025:

Projetos públicos de irrigação
1. A norma permite a concessão de crédito para projetos públicos de irrigação[14] em terras coletivas parcialmente embargadas, desde que o financiamento se destine a áreas e pessoas sem relação direta com o embargo. Essa exceção, inspirada nas regras para assentamentos e comunidades tradicionais, representa um avanço ao viabilizar o acesso ao crédito sem comprometer a responsabilização dos autores das infrações.

Projetos de recuperação da área embargada
2. O impedimento não se aplica quando o crédito for utilizado para financiar a recuperação da vegetação na área embargada. Para isso, o mutuário deve apresentar um projeto técnico protocolado no órgão autuante e comprovar o pagamento das multas associadas ao embargo. Essa medida é positiva por incentivar a regularização, mas sua efetividade depende da existência de mecanismos de monitoramento que assegurem que os recursos estejam sendo usados para a finalidade proposta.

Mutuários em processo de regularização
3. A resolução ajusta a regra de impedimento à concessão de crédito para imóveis com áreas embargadas ao permitir, de forma temporária (até 2027), o financiamento para mutuários que comprovem estar em processo de regularização da área. Essa medida busca diferenciar produtores que permanecem em situação irregular daqueles que estão se esforçando para cumprir a legislação ambiental, evitando penalizações indevidas. A concessão do crédito está condicionada ao cumprimento de uma série de requisitos,[15] mas sua efetividade depende da existência de mecanismos de monitoramento que garantam que os compromissos assumidos estejam sendo de fato cumpridos e que a recuperação da vegetação esteja em andamento. Sem esse controle, o incentivo à regularização pode perder força e gerar risco de uso indevido dos recursos.

Risco de Estímulo ao Desmatamento e à Grilagem em Florestas Públicas Não Destinadas

Desde a publicação da Resolução CMN nº 5.081/2023, o crédito rural passou a ser vedado para atividades em imóveis sobrepostos, ainda que parcialmente, as florestas públicas não destinadas — também chamadas de “Florestas Públicas Tipo B”. Essas áreas, localizadas em terras públicas sem destinação específica pelo poder público (como, por exemplo, unidades de conservação), são particularmente vulneráveis à grilagem. Na ocasião, a norma permitia duas exceções: (i) imóveis com título de propriedade e (ii) imóveis com até quatro módulos fiscais e com pedido de regularização fundiária deferido pelo Incra.

A medida provocou forte reação de setores do agronegócio, que pressionaram o CMN por mudanças nas regras. Em resposta, a Resolução CMN nº 5.193/2024 manteve a vedação geral e a exceção aos imóveis com título de propriedade, mas ampliou significativamente o escopo da exceção aplicável a imóveis sobrepostos a florestas públicas não destinadas — abrindo caminho para um potencial retrocesso.

É importante notar que imóveis com título de propriedade devidamente registrados não deveriam sequer ser enquadrados como “sobrepostos” a florestas públicas, pois são bens privados e, portanto, não estariam sujeitos aos impedimentos destinados a áreas públicas. Isso reforça que a exceção para imóveis titulados é, em grande medida, redundante: se o imóvel privado não consta como área pública, o impedimento não se aplicaria de toda forma.

Além disso, para que se aplique corretamente a vedação a imóveis efetivamente sobrepostos a florestas públicas, é fundamental dispor de uma base confiável de consulta a essas áreas. A verificação depende da base de dados do Cadastro Nacional de Florestas Públicas, que consolida informações federais, estaduais e municipais sobre essas áreas. Ao vincular a concessão de crédito à situação fundiária do imóvel — se titulado ou sobreposto à floresta pública — a resolução, indiretamente, cria um incentivo para que os entes federados mantenham essas informações atualizadas, evitando que produtores rurais sejam injustamente penalizados por inconsistências cadastrais.

A resolução ainda aumentou o limite de área inserido em florestas públicas, de quatro para quinze módulos fiscais, ampliando consideravelmente a extensão de ocupações sobrepostas que podem ser financiadas. Também foi feita a retirada da exigência de comprovação de regularização fundiária junto ao Incra, permitindo o acesso ao crédito, mesmo sem evidência de que a ocupação seja legal ou regularizável. Ao permitir o financiamento em imóveis com essas características, a norma cria brechas que podem estimular o desmatamento e favorecer a grilagem.

A exigência de comprovação de regularização tinha como função garantir o financiamento apenas de imóveis passíveis de deixar de ser terra pública. Com a retirada desse critério — e sem a substituição por exigências mínimas baseadas nas regras da regularização fundiária —, abre-se espaço para o uso do crédito rural em ocupações irregulares.[16],[17]

Embora a resolução tenha incluído uma condicionante — a manutenção da vegetação nativa e a vedação ao uso do crédito nas áreas florestadas —, essas salvaguardas não são suficientes. Sem mecanismos eficazes de controle e fiscalização, há alto risco de que os recursos sejam aplicados justamente nas áreas que deveriam estar protegidas, estimulando a conversão florestal e a consolidação de ocupações irregulares.

Assim, ao ampliar o acesso ao crédito sem assegurar a regularidade fundiária e sem instrumentos robustos de monitoramento, a norma pode acabar legitimando ocupações em terras públicas e estimulando o desmatamento em florestas não destinadas — áreas cruciais para a conservação e a integridade do patrimônio público.

Falta de Mecanismos de Monitoramento e Sanções Efetivas em Caso de Descumprimento das Normas Socioambientais

A Resolução CMN nº 5.193/2024 determina que o contrato de crédito rural deve prever expressamente que, em caso de descumprimento de qualquer impedimento socioambiental durante a vigência da operação, a concessão poderá ser desclassificada, conforme previsto no Manual de Crédito Rural (MCR 2-8).

A desclassificação implica a perda do enquadramento da operação nas condições favorecidas do crédito rural, podendo resultar em revisão das condições contratuais, como aumento das taxas de juros, perda de subsídios e, eventualmente, exigência de amortização imediata. Trata-se, portanto, de uma sanção contratual de natureza econômica, com potencial de desestimular o descumprimento dos requisitos socioambientais por parte dos mutuários.

Essa desclassificação, contudo, é uma medida limitada e não garante a reparação ambiental da área impactada. Além disso, sua aplicação depende da capacidade de as instituições financeiras identificarem e comunicarem eventuais descumprimentos, bem como do Banco Central monitorar os impedimentos. Isso reforça a necessidade de mecanismos eficazes de monitoramento e fiscalização.

Assim, embora positiva, a previsão de desclassificação precisa ser complementada por sanções mais robustas e por um sistema de controle efetivo tanto para os produtores quanto para as instituições financeiras, a fim de assegurar o cumprimento real dos impedimentos socioambientais previstos na norma.


Este trabalho é financiado por Gordon and Betty Moore Foundation e Norway’s International Climate and Forest Initiative (NICFI). Nossos parceiros e financiadores não necessariamente compartilham das posições expressas nesta publicação.

A autora gostaria de agradecer a Wagner Faria de Oliveira, Juliano Assunção e Natalie Hoover El Rashidy pelos comentários e sugestões, a Giovanna de Miranda e Camila Calado pela revisão e edição do texto e a Meyrele Nascimento pelo trabalho de design gráfico.


[1] Resolução CMN nº 5.193, de 23 de maio de 2024 – Altera a Resolução CMN nº 5.061, de 16 de fevereiro de 2023, que dispõe sobre a organização e o funcionamento de confederações de serviço. bit.ly/3Z78NEQ.

[2] Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964 – Dispõe sobre a Política e as Instituições Monetárias, Bancárias e Creditícias, Cria o Conselho Monetário Nacional e dá outras providências. Art. 2º e art. 4º, VI. bit.ly/4keMLbe.

[3] A Lei nº 4.829/1965 estabelece que o CMN é responsável por criar diretrizes de aplicação e controle e critérios de seleção e priorização para o crédito rural. Para saber mais: Lei nº 4.829, de 5 de novembro de 1965 – Institucionaliza o crédito rural. bit.ly/3EUnHY9.

[4] A Lei nº 8.171/1991 estabelece que, entre os objetivos do crédito rural, está o incentivo à conservação do solo e à preservação do meio ambiente. Para saber mais: Lei nº 8.171, de 17 de janeiro de 1991 – Dispõe sobre a política agrícola. bit.ly/42bqJyw.

[5] Projeto de Lei nº 205, de 2025 – Altera a Lei 4.829, de 5 de novembro de 1965 e a Lei 11.952, de 25 de junho de 2009 e dá outras providências. bit.ly/44rqtOU.

[6] As fontes de recurso controladas são: a) obrigatórios (exigibilidades); b) operações oficiais de crédito; c) sujeitos à subvenção da União, sob a forma de equalização de encargos financeiros, inclusive do BNDES; d) poupança rural, quando aplicados segundo as condições definidas para os recursos obrigatórios; e) Fundos Constitucionais de Financiamento (FCFs); f) Fundo de Defesa da Economia Cafeeira (Funcafé).

[7] Mourão, João et al. CAR a CAR: A Relação Entre o Crédito Rural Subsidiado e o Desmatamento. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2024. bit.ly/CARaCAR.

[8] Souza, Priscila et al. CAR a CAR: As Instituições Financeiras e o Crédito para Propriedades com Desmatamento. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2024. bit.ly/3ZGs4O2.

[9] Resolução BCB nº 140, de 15 de setembro de 2021 – Dispõe sobre a criação da Seção 9 (Impedimentos Sociais, Ambientais e Climáticos) no Capítulo 2 (Condições Básicas) do Manual de Crédito Rural (MCR). bit.ly/3VlHUua.

[10] Resolução CMN nº 5.081, de 29 de junho de 2023 – Ajusta normas referentes a impedimentos sociais, ambientais e climáticos para concessão de crédito rural. bit.ly/495jtpG.

[11] Mendes, César. Senadores querem informações sobre proibição de crédito para imóveis com restrições ambientais. Rádio Senado. 2024. Data de acesso: 24 de maio de 2025. bit.ly/43ikZ8c.

[12] Audiência pública da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados, realizada em 23 de maio de 2024. Para saber mais: Câmara dos Deputados. Concessão de crédito rural – Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural – 23/05/24. 2024. Data de acesso: 24 de maio de 2025. bit.ly/450xKpg.

[13] Resolução CMN nº 5.158, de 24 de julho de 2024 – Estabelece regra transitória aplicável aos impedimentos sociais, ambientais e climáticos, de que trata o MCR 2-9, em decorrência dos impactos da catástrofe climática sobre o registro de informações relativas ao Cadastro Ambiental Rural de imóveis situados no estado do Rio Grande do Sul e estabelece regras para embargos de órgão ambiental para imóveis ocupados por assentamentos da reforma agrária ou por povos e comunidades tradicionais. bit.ly/4joHKfe.

[14] Lei nº 12.787, de 11 de janeiro de 2013 – Dispõe sobre a Política Nacional de Irrigação; altera o art. 25 da Lei nº 10.438, de 26 de abril de 2002; revoga as Leis nºs 6.662, de 25 de junho de 1979, 8.657, de 21 de maio de 1993, e os Decretos-Lei nºs 2.032, de 9 de junho de 1983, e 2.369, de 11 de novembro de 1987; e dá outras providências. Artigos 24 e ss. bit.ly/3F8dCH5.

[15] O mutuário deve: comprovar o pagamento de multas relativas ao embargo; ter um projeto técnico de recuperação, que deve ter seu início em até seis meses após a contratação do crédito; isolar a área embargada com cercamento ou outra medida de proteção; não ter sido autuado, nem ter imóvel de sua propriedade autuado, por descumprimento de outro embargo ambiental cadastrado no Ibama; não utilizar os recursos do crédito na área embargada, exceto aqueles destinados à sua recuperação; não utilizar a área embargada para atividades agropecuárias durante a vigência da operação de crédito; possuir o CAR do imóvel em status ativo ou aguardando análise, sem pendências; não realizar atividades agropecuárias em áreas de Reserva Legal (RL) e Área de Proteção Permanente (APP) no imóvel rural no momento da contratação e durante a vigência do contrato; e possuir uma área embargada correspondente a no máximo 5% da área do imóvel — para embargos com notificação emitida a partir de 2 de janeiro de 2025, essa área deve ser de no máximo 5% do imóvel ou 20 hectares, o que for menor.

[16] Lei nº 11.952, de 25 de junho de 2009 – Dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal; altera as Leis nos8.666, de 21 de junho de 1993, e 6.015, de 31 de dezembro de 1973; e dá outras providências. bit.ly/4iVyQFQ.

[17] Chiavari, Joana et al. Panorama dos Direitos de Propriedade no Brasil Rural. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2021. bit.ly/3LhEKlM.

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