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No Brasil, a regulamentação de atividades que impactam o meio ambiente e a aplicação de medidas para garantir o cumprimento da lei (conhecidas em conjunto por ações de “comando e controle”) são ferramentas essenciais para a prevenção e combate ao desmatamento ilegal na Amazônia. Entretanto, uma vez constatada uma infração ambiental, como a supressão de vegetação ou a prática de queimada sem autorização, para responsabilizar o infrator e condená-lo ao pagamento da multa e à obrigação de reparar os danos causados, é preciso que o órgão ambiental promova um processo administrativo de apuração da infração ambiental.

Nesse sentido, o procedimento administrativo sancionador ambiental é um elemento chave no enfrentamento do desmatamento ilegal e torná-lo mais eficaz é fundamental para que ele cumpra sua dupla função: penalizar o infrator e dissuadir terceiros de praticar a infração (caráter pedagógico da sanção).

Em abril de 2019, foi promulgado o Decreto nº 9.760 que alterou significativamente a sistemática do procedimento sancionador do Ibama. A principal novidade foi a criação de uma etapa de conciliação ambiental, anterior à etapa de julgamento do auto de infração.[1] De acordo com o decreto, a conciliação ambiental deve ser estimulada com vistas a encerrar os processos administrativos ambientais federais. Estas mudanças foram regulamentadas, posteriormente, pela Instrução Normativa Conjunta MMA/Ibama/ ICMBio nº 2, de 29 de janeiro de 2020.

Embora, em tese, a etapa de conciliação ambiental possa trazer uma maior celeridade ao procedimento sancionador ambiental, esta mudança foi recebida com muitas reservas pelos diferentes setores da sociedade. Além de ser um mecanismo muito incipiente, há uma grande apreensão sobre como será implementado. As mudanças no procedimento administrativo ambiental também foram acompanhadas por grandes mudanças na estrutura de governança do processo sancionador ambiental do Ibama.

As alterações promovidas no procedimento administrativo sancionador ambiental foram, inclusive, objeto de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 755/2020) na qual os autores pedem a declaração de inconstitucionalidade do Decreto nº 9.760/2019, bem como a suspensão imediata de sua eficácia (Supremo Tribunal Federal 2020).

As mudanças recentes mal estavam sendo implementadas quando o governo editou, em abril de 2021, uma nova instrução normativa alterando mais uma vez as regras do procedimento administrativo ambiental federal.[2] Estas alterações provocaram a reação imediata dos servidores do Ibama e do ICMBio que argumentaram não terem condições de implementar as últimas modificações e afirmaram que todo o sistema sancionador se encontrava paralisado (Bragança 2021a). Duas semanas depois, uma outra instrução normativa já alterava a anterior.[3] Essas mudanças não foram só objeto de críticas, elas também provocaram pedidos de exoneração de servidores que ocupavam cargos estratégicos nas autarquias (Borges 2021b).

Além disso, outros movimentos do Ministério do Meio Ambiente (MMA), sob a liderança do ministro Ricardo Salles, como a criação de uma força policial na Amazônia para ações de fiscalização ambiental e a fusão do Ibama e ICMBio, adicionam ainda mais insegurança e desconfiança e indicam que novas alterações no sistema sancionador ambiental podem estar por vir. Ao mesmo tempo, uma operação recente da Polícia Federal sobre exportação ilegal de madeira nativa, envolvendo o ministro, o presidente do Ibama, Eduardo Bim, e outros integrantes do MMA, culminou com o afastamento temporário de Bim da presidência do Ibama e ações de busca e apreensão nos escritórios de Salles (Talento et al. 2021), o que mostra que o momento atual é de grande incerteza.

Para entender os impactos destas alterações na legislação e avaliar se as mesmas podem trazer uma maior efetividade ao procedimento administrativo sancionador ambiental do Ibama, pesquisadoras do Climate Policy Initiative/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CPI/PUC-Rio) fizeram uma revisão da literatura e analisaram detalhadamente o Decreto nº 9.760/2019 e demais normas regulamentadoras e a nova estrutura de governança do processo sancionador ambiental. As pesquisadoras também levantaram dados relativos aos autos de infração em consulta às bases de dados abertos do Ibama e por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).

O relatório está dividido em cinco seções. Preliminarmente, o relatório apresenta os principais destaques e as implicações de políticas públicas. A primeira seção é um contexto histórico, com a evolução das principais normas que regulamentam o processo administrativo federal para apuração de infrações ambientais, acompanhada de uma linha do tempo. A segunda seção descreve de forma clara e sintética o novo marco legal do procedimento administrativo sancionador do Ibama, suas principais etapas e os órgãos envolvidos. A descrição do novo marco legal é acompanhada por um fluxograma e um organograma dos principais órgãos do Ibama que atuam nesse procedimento. A terceira seção faz uma análise técnica do novo marco legal, as vantagens e desvantagens e possíveis barreiras para sua implementação. A quarta seção faz uma avaliação da implementação desse novo modelo pelo governo atual, ressaltando os problemas e os desafios com base em dados e evidências. Essa seção também mostra como as mudanças na governança ambiental estão afetando a implementação desse novo modelo. Por fim, a quinta seção mostra os reflexos do novo procedimento administrativo sancionador e da nova estrutura de governança no combate ao desmatamento na Amazônia.

O QUE É O PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR AMBIENTAL?

Os órgãos ambientais devem fazer o monitoramento e a fiscalização de condutas e atividades para verificar se estão de acordo com as regras jurídicas de proteção ambiental. Caso seja constatada uma infração ambiental, como a supressão de vegetação ou a prática de queimada sem autorização, o órgão ambiental deve agir de forma repressiva, impondo àquele que causou o dano (infrator) as sanções cabíveis, como a multa ambiental. Porém, para responsabilizar o infrator e condená-lo às sanções (como o pagamento de multa) e à obrigação de reparar os danos causados, é preciso que o órgão ambiental promova um processo administrativo de apuração da infração ambiental.

A responsabilização por danos ambientais, prevista na Constituição Federal de 1988, pode ocorrer simultaneamente nas esferas administrativa, cível e criminal, tendo cada uma delas as suas peculiaridades e procedimentos específicos para sua apuração. Além disso, a Constituição também prevê que a competência em matéria ambiental é dividida entre os três entes da federação – União, estados e municípios, de modo que os estados e municípios também possuem regras de proteção ambiental e procedimentos administrativos próprios. Este relatório trata apenas do procedimento administrativo sancionador ambiental, em âmbito federal. Apesar do atual procedimento ser o mesmo para ambas as autarquias, Ibama e ICMBio, neste documento examinamos o tema com o enfoque sobre as ações do Ibama.

PRINCIPAIS DESTAQUES

• Embora a conciliação ambiental possa, em tese, trazer maior celeridade ao procedimento administrativo sancionador ambiental, diminuindo o prazo para o encerramento dos processos com a conciliação entre as partes, sua implementação pelo atual governo tem sido deficiente: (i) a regulamentação da etapa de conciliação se deu de forma tardia, descoordenada e as normas que regulamentam o agendamento das audiências de conciliação são ambíguas, prejudicando a implementação desta nova etapa; (ii) as audiências de conciliação não estão sendo realizadas em número necessário, atrasando o processo de milhares de autos de infração; (iii) os integrantes do Núcleo de Conciliação Ambiental (Nucam) foram designados sem critérios claros e objetivos e em número insuficiente em vários estados, impossibilitando que esta etapa possa ser implementada adequadamente; (iv) as alterações promovidas pela nova instrução normativa atribuindo ao Nucam a competência pela análise preliminar dos autos de infração, oralmente no início da audiência de conciliação, adiciona uma camada de complexidade que poderá atrasar ainda mais a implementação da etapa de conciliação ambiental; e (v) a falta de transparência dos dados relativos às audiências de conciliação impede o acompanhamento e avaliação, pela sociedade civil, desta nova etapa procedimental.

As alterações recentes no procedimento administrativo sancionador do Ibama, estabelecendo uma etapa preliminar de análise dos autos de infração por autoridade hierarquicamente superior ao agente que promoveu a fiscalização, sem escopo bem definido, sem prazo e sem a obrigação de emissão de parecer técnico fundamentando a decisão, permitem que estas autoridades atuem com demasiada discricionariedade e controle sobre as atividades dos agentes de fiscalização e sobre a continuidade ou não do processo administrativo.

A nova governança do sistema sancionador concentra toda a instrução processual em uma equipe nacional, sob a orientação do Ibama sede. Se de um lado esta centralização poderia, em princípio, dar mais uniformidade e celeridade aos processos, por outro lado, se esta equipe for composta por um número insuficiente de servidores ou por servidores sem a qualificação técnica necessária, pode se tornar ponto de represamento no fluxo dos processos, tornando o procedimento sancionador mais longo e ineficaz.

A centralização do julgamento dos autos de infração nos superintendentes estaduais (1a instância) e no presidente do Ibama (2a instância) além de constituir um gargalo no fluxo de tramitação dos processos, torna o procedimento sancionador ambiental mais facilmente sujeito ao controle político dessas pessoas. Além disso, os superintendentes não possuem a garantia mínima de permanência no cargo e podem sofrer pressões externas visando o direcionamento das decisões proferidas.

A exoneração de servidores do quadro técnico do Ibama que ocupavam cargos estratégicos e sua substituição por pessoas sem experiência em gestão ambiental e qualificação técnica necessária põe em xeque a capacidade (e a vontade) do atual governo de tornar o procedimento administrativo mais eficaz para apurar as infrações ambientais.

A alteração constante dos marcos legais do procedimento administrativo sancionador ambiental federal gera uma enorme insegurança jurídica, paralisa as atividades de fiscalização e apuração das infrações ambientais até que os órgãos consigam se adaptar às novas regras e acarreta um grande desperdício de recursos públicos usados para a capacitação do corpo técnico e compra e/ou desenvolvimento de novos sistemas.

Um procedimento administrativo sancionador ineficaz, aliado à fragilização da governança ambiental, acarretará impactos significativos na política de combate ao desmatamento da Amazônia, tanto no que diz respeito à não responsabilização adequada dos infratores ambientais, quanto ao enfraquecimento do seu poder de dissuasão.

LEIA o relatório COMPLETo AQUI


[1] Este decreto também altera significativamente as regras sobre a conversão de multa ambiental em prestação de serviços ambientais, que já foi objeto de análise pelo CPI/PUC-Rio (Chiavari, Joana e Cristina Leme Lopes. Decreto nº 9.760/2019 Altera Regras de Conversão de Multa Ambiental em Prestação de Serviços Ambientais. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2019. bit.ly/3tKmRBA.)

[2] Instrução Normativa Conjunta MMA/Ibama/ICMBio nº 1, de 12 de abril de 2021.

[3] Instrução Normativa Conjunta MMA/Ibama/ICMBio nº 2, de 26 de abril de 2021.

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