• Joana Chiavari e Gabriel Cozendey*
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Ferrovia Norte-Sul (Foto: Divulgação/PAC)

(Foto: Divulgação/PAC)

A infraestrutura no Brasil se mostra, em diversas áreas, insuficiente e de baixa qualidade. Essa carência desperta um sentimento de urgência que é tão bem-vindo quanto necessário. É vindo ao encontro dessa urgência que, nos últimos instantes do ano legislativo de 2021, foi sancionada e publicada a Nova Lei das Ferrovias (Lei nº 14.273/2021), que regulamentou o regime das autorizações ferroviárias no país. Esse marco legal, porém, já carece de um ajuste urgente, sob pena de criar riscos de curto e longo prazos para os projetos e a sociedade.

O objetivo das autorizações é facilitar a exploração de ferrovias pelo setor privado, sem a necessidade de complexos procedimentos de licitação. Nesse modelo, os empreendedores são os proprietários das ferrovias e os riscos de construção e exploração recaem quase totalmente sobre eles. Em contrapartida, contam com enorme liberdade para a condução dos empreendimentos.

A simplicidade e a agilidade do regime de autorização são novidades positivas, porque são capazes de acelerar os investimentos em infraestrutura, um dos estímulos necessários ao crescimento econômico no contexto da pandemia de Covid-19. Mas tão importante quanto facilitar a exploração de ferrovias pelo setor privado é garantir que os investimentos sejam seguros e que os projetos sirvam aos interesses amplos da sociedade brasileira. Por isso, é preciso estabelecer a análise de viabilidade das ferrovias privadas, garantindo que os riscos possam ser antecipados e abordados de forma adequada.

O texto da Nova Lei das Ferrovias, conforme aprovado pelo Congresso Nacional, previa a apresentação de estudos de viabilidade junto aos pedidos de autorização, mas veto presidencial excluiu essa obrigação antes da publicação da lei. Estudos de viabilidade são fundamentais em projetos de infraestrutura e servem à antecipação de riscos socioambientais, técnicos e econômicos dos projetos, como ferramenta de planejamento.

Quanto mais robustos esses estudos, menor a probabilidade de que projetos inviáveis ou de baixa viabilidade avancem até a fase de implementação. Os estudos de viabilidade também produzem insumos que podem servir de base para o licenciamento ambiental.

A justificativa para o veto presidencial foi a de que os riscos das ferrovias autorizadas recairiam integralmente sobre os empreendedores, portanto caberia a eles, e não ao governo, gerir esses riscos, sendo desnecessária, enfim, a apresentação dos estudos. Contudo, é o governo quem precisa mensurar os riscos socioambientais, que nunca são apenas privados, mas de toda a sociedade, assim como avaliar em que medida são evitáveis ou mitigáveis.

As dimensões técnica, econômica e socioambiental, ademais, não são estanques. Os impactos financeiros de passivos socioambientais podem ser consideráveis, a ponto de frustrar uma análise de viabilidade feita isoladamente pelos empreendedores, e acabar culminando em atrasos, interrupção ou mesmo abandono de projetos. Esses seriam os mencionados riscos de curto prazo. Os de longo prazo se relacionam aos riscos climáticos do país, cuja gestão passa, inevitavelmente, pelo desenvolvimento de um modelo de infraestruturas sustentáveis. A entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), almejada pelo Brasil, depende de uma gestão adequada desses riscos pelo setor público.

Além do referido veto, outras medidas tomadas pelo atual governo parecem indicar que se encontra em execução uma política pública claramente direcionada à precarização da viabilidade socioambiental de projetos de infraestrutura. Por exemplo, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) autorizou, também no final de 2021, a construção de mais de 2.000 km de rodovias federais na Amazônia sem a necessidade de elaboração de estudos de viabilidade. Essas rodovias e as ferrovias autorizadas carecerão de qualquer análise preliminar oficial de seus riscos socioambientais, o que pode prejudicar a qualidade e a efetividade do licenciamento ambiental.

A mencionada precarização não decorre apenas de ações concretas do governo federal. A omissão com relação aos frágeis processos de elaboração dos estudos de viabilidade também é causa do problema. É certo que essa fragilidade não é culpa exclusiva do atual governo, mas também é certo que nada se fez de efetivo nos últimos três anos para reverter esse quadro. Em mais de uma ocasião, o Tribunal de Contas da União (TCU) já constatou a baixíssima qualidade dos estudos de viabilidade elaborados para a concessão de infraestruturas de transportes terrestres. Segundo estudos do Climate Policy Initiative e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CPI/PUC-Rio), o problema parece decorrer da governança e dos procedimentos empregados, que desincentivam a produção de estudos com o detalhamento e a profundidade necessários.

É necessário que o Congresso derrube esse veto do Presidente da República, para restabelecer o texto da Nova Lei das Ferrovias originalmente aprovado, exigindo a apresentação de estudos de viabilidade das ferrovias privadas. É um requisito que, se bem feito, terá consequências não apenas para a seleção dos empreendedores, a implementação e a operação rápida e bem-sucedida dos projetos, mas também para os objetivos de políticas públicas e de política externa do país.

*Joana Chiavari é diretora associada e Gabriel Cozendey é analista sênior de Direito e Governança do Clima da Climate Policy Initiative, da PUC-Rio